Babel

As palavras são uma fonte de mal-entendidos, já dizia o Príncipe de Exupéry. Façamos delas, então, os alicerces da Babel. Talvez cheguemos ao milagre das línguas, ao pentecostes. Words, words, words.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

João da Cruz e da Poesia



Hoje, comemoramos o poeta e místico espanhol São João da Cruz (1542-1591). Artista cuja obra é produto do contato pessoal com esse ser-ideia tido como Deus, ele tenta, por meio da escrita, da linguagem literária, discorrer sobre sua vivência mística. Para expressar uma realidade transcendental, é necessária uma linguagem multifacetada. Em São João da Cruz, a experiência religiosa gera poesia.

Selecionei um poema que faz parte do tratado Noite Escura. Apesar de o monge carmelita descalço fazer verdadeira exegese de seu poema, a obra literária não se amarra e permite várias interpretações, não somente as que o santo nos dá. A poesia de João da Cruz, por sua capacidade de desvelar-se e nunca revelar-se, lembra o uróboro, símbolo do infinito; a obra de arte é ilimitada em seus sentidos. Ao contrário do dogmatismo, o misticismo muitas vezes afirma que há tantos caminhos para Deus quantas são as pessoas, como diz Karen Armstrong em sua Uma história de Deus. Diferentemente da crítica que fundamenta o entendimento de uma obra na pessoa do autor, a experiência poética parece mostrar que há tantas interpretações quanto há leitores. Segue o poema em espanhol e português. Logo após, link do poema musicado.

En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
(¡oh dichosa ventura!)
salí sin ser notada,
estando ya mi casa sosegada.                  

  A oscuras y segura,
por la secreta escala disfrazada,
(¡oh dichosa ventura!)
a oscuras y en celada,
estando ya mi casa sosegada.                    

  En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz ni guía                             
sino la que en el corazón ardía.                

  Aquésta me guïaba
más cierta que la luz del mediodía,
adonde me esperaba
quien yo bien me sabía,
en parte donde nadie parecía.                   

  ¡Oh noche que me guiaste!,
¡oh noche amable más que el alborada!,
¡oh noche que juntaste
amado con amada,
amada en el amado transformada!                  

  En mi pecho florido,
que entero para él solo se guardaba,
allí quedó dormido,
y yo le regalaba,
y el ventalle de cedros aire daba.              

  El aire de la almena,
cuando yo sus cabellos esparcía,
con su mano serena
en mi cuello hería,
y todos mis sentidos suspendía.                 

  Quedéme y olvidéme,
el rostro recliné sobre el amado,
cesó todo, y dejéme,
dejando mi cuidado
entre las azucenas olvidado.     


Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh, ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

Oh, noite que me guiaste!
Oh, noite mais amável que a alvorada!
Oh, noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado. 


O Cristo de São João da Cruz, de Salvador Dali




              



Um comentário:

  1. Um dia de prova na Advance, provável futuro novo trabalho. Lembrei dele (de São João da Cruz)na hora do teste, por quem tenho muita simpatia.
    Lindo poema.
    Lu

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