Babel

As palavras são uma fonte de mal-entendidos, já dizia o Príncipe de Exupéry. Façamos delas, então, os alicerces da Babel. Talvez cheguemos ao milagre das línguas, ao pentecostes. Words, words, words.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Um som que reverbera, ainda que o silêncio exista.

http://fc05.deviantart.net/fs70/i/2012/008/c/8/beija_flor_by_joao_alberto-d4ky65r.jpg

Minha última postagem teve um quê de amargura. Não quero escrever hoje sobre coisas tristes, ainda que – infelizmente – humanas. Quero compartilhar algo feliz, simples e comum; algo que, mesmo novo, é muito antigo. Uma história já contada tantas vezes, mas escutada por mim pela primeira vez. Uma história que mudou a minha vida, mesmo que não perceba ainda quanto. Sei que a semente da mudança, germinando em silêncio, crescerá e transformará a paisagem.

 

Estava fora da sala de exames, aguardando. Uma amiga veio chamar-me. Ela chorava. Pensei o pior. Mas acalmei-me. Ao entrar na sala, a médica mostrou-me as imagens do ultrassom. Dois embriões. Duas futuras crianças. Minha esposa chorava. Escutei a batida dos coraçõezinhos. Eram sons fortes e rápidos. Ouvi o primeiro; depois, o segundo. O som ainda reverbera em mim. Nunca tinha escutado algo tão íntimo, tão importante para mim. Algo tão humano. Ainda escuto, no silêncio, o bater daqueles beija-flores de sangue: pequenos, frágeis, e arrebatadores.

 

http://fc03.deviantart.net/fs21/i/2007/232/3/6/Colibri_by_mejia.jpg

Para eles, ou elas, que ainda não conheço, mas que me despertam amor.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Um texto sem pé nem cabeça, mas com doses de lucidez: senso comum, amor, morte e outros assuntos misturados.



Alguns alunos me têm perguntado o que significa senso comum. O interesse é despertado por o ENEM orientar que se evitem, na redação, argumentos que se baseiam nessa forma de conhecimento.

O site Mundo Educação[1] define senso comum como a compreensão de todas as coisas por meio do saber social, ou seja, é o saber que se adquire através de experiências vividas ou ouvidas do cotidiano. No senso comum, não é necessário que haja um parecer científico para que se comprove o que é dito, é um saber informal que se origina de opiniões de um determinado indivíduo ou grupo que é avaliado conforme o efeito que produz nas pessoas. Enquanto a ciência busca a verdade em todas as coisas por meio de testes e comprovações, o senso comum é utilizado antes mesmo que se saiba se o método empregado traz o que se espera. Muitas vezes, o senso comum não resiste a uma breve análise.

Um exemplo de senso comum que analisei recentemente diz respeito à religião. Quando se fala em credos, principalmente o cristão, imagina-se uma ideologia que prega o bem-estar do ser humano, a bondade, a compaixão e tantos outros valores elevados. Isso, porém, não se sustenta quando se avaliam as ações dos muitos (a maioria?) que professam essa fé. Não me refiro às Cruzadas ou à Inquisição, com seus assassinatos impunes, mas às atitudes de fiéis de várias congregações que, de maneira desonesta, ofendem o próximo porque o outro não compactua com suas crenças. Se há exemplos de amor ao ser humano no Cristianismo, eles também existem em organizações que sequer professam uma religião. Existem, no entanto, nessas igrejas cristãs, atos de extrema maldade, desde exploração monetária a acobertamento de pedófilos, desde incentivo à agressão a ações de violência contra os outros, entre vários outros fatos. Embora não pareça, pois contradiz o senso comum, a religião também é fonte de males. Muitos deles ocasionados por normas morais que se opõem a valores estritamente humanos.

O filósofo Bertram Russell[2] escreveu que a superstição é a fonte das normas morais. Segundo ele, originalmente, certos atos eram tidos como desagradáveis aos deuses, sendo proibidos por lei, pois poderiam atrair a ira divina sobre a comunidade. Surgiu, assim, a noção de pecado, como algo que desagrada a Deus. Certamente, uma pessoa lúcida, que não se contenta com o senso comum, não se satisfará com a justificativa de que este ou aquele ato constitui pecado e pronto. Ela investigará se tal ação verdadeiramente acarreta algum dano, ou se, pelo contrário, o que ocasiona algum mal é crê-lo pecaminoso. A Igreja católica (isso mesmo, o “c” é minúsculo) insiste em se evitar o uso de preservativos, mesmo que isso contribua para a gravidez indesejada e a propagação de doenças venéreas, entre elas a AIDS, que tanta dor traz às pessoas. Ela prega a abstinência sexual para se evitar tais moléstias, embora saiba que a continência não acontecerá, pois não é regra. E as mortes acontecerão. Ela condena o controle de natalidade, o que faz com que haja nascimentos de crianças cujos pais não têm condições de criá-las, propagando irresponsavelmente a miséria. As igrejas cristãs, geralmente, condenam o divórcio, enquanto muitos – principalmente muitas – são submetidos a um cotidiano frustrante e, não raro, violento.

A realidade é que poucas pessoas, e igrejas, se importam em garantir a felicidade alheia. Poucos se preocupam com quem passa fome, com quem não tem onde morar ou o que vestir. Um número reduzido de crentes se envolve com a ajuda desinteressada ao próximo. A maioria incomoda-se mais com a moralidade sexual do outro do que com o que realmente interessa: suprir as necessidades básicas do ser humano. Muitos que não são cristãos e/ou não professam um credo cuidam do próximo muito bem, desinteressadamente. Carregar a Bíblia no braço é fácil, abandonar os preconceitos e os rituais vazios, derivados do senso comum, e ocupar-se com o bem coletivo é muito difícil. Aqui no Brasil, enquanto esbraveja contra a união civil entre pessoas do mesmo sexo (observe que é união civil, não religiosa), por exemplo, o Pastor Silas Malafaia não titubeia em pedir uma soma alta em dinheiro mesmo para aqueles que estão desempregados e vivendo “de favor” [3].  Há pastores que ganham até 22 mil reais por mês! Não imagino Dorothy Stang, que deu a vida pelos seus amigos, ganhado um sexto desse valor, apesar de ela ser bem mais coerente com o que realmente importa no Cristianismo.

Dorothy fez de sua crença ponte, acompanhou solidária a vida de luta dos trabalhadores campesinos, sobretudo na região da Transamazônica, no Pará. Defensora de uma reforma agrária justa, mantinha intenso diálogo com lideranças camponesas, políticas e religiosas, na busca de soluções efetivas para os conflitos relacionados à posse e à exploração da terra na Região Amazônica. Em 2004, ela recebeu premiação da Ordem dos Advogados do Brasil (seção Pará) pela sua luta em defesa dos direitos humanos. Ela falava de vida em abundância, vida aqui e agora. Mataram Dorothy Stang, por defender o ser humano.

Em contrapartida aos gestos humanitários de Stang, o discurso religioso feito no dia 13 de maio por Charles Worley, pastor de uma igreja batista de Maiden, na Carolina do Norte, é uma exaltação ao ódio. Como se diz, a boca fala do que o coração está cheio. Falando em nome de Deus, o eminente pregador disse: "Construam um grande cercado (...) e ponham dentro todas as lésbicas, voem acima delas e atirem-lhes comida. Façam o mesmo com os homossexuais e garantam que a cerca seja elétrica, para que não possam sair... e em alguns anos morrerão [porque] não podem se reproduzir".[4]

Baseando-se em uma moral sexual cunhada há milênios por um povo semítico que defendia certos preceitos reprodutivos, que originou um senso comum que estabelece regras para a prática da sexualidade, o pastor acredita que deixar morrer é válido para defender essas regras morais. Ele fala de morte. Muitos crentes fazem da Bíblia uma cerca. Segundo o pastor – e tantos outros –, uma cerca elétrica.

Parafraseando a filósofa Marilena Chauí[5], uma das principais características da atitude filosófica e racional é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. Outra característica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude de quem não se alicerça no senso comum.



Postagem dedicada a A. Cruz e T. Mesquita, cujas conversas, quando sérias, valem a pena. 





[1]  Senso comum. Acesso em: 1º jun. 2012.
[2] RUSSEL, Bertran. No que acredito.Porto Alegra: L&PM, 2007.
[5] CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia. São Paulo: Ática, 2000.