Babel

As palavras são uma fonte de mal-entendidos, já dizia o Príncipe de Exupéry. Façamos delas, então, os alicerces da Babel. Talvez cheguemos ao milagre das línguas, ao pentecostes. Words, words, words.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Πεντηκοστή, ou a Babel de uma reportagem de Veja.



Devido à pesquisa do mestrado, não atualizo este blog há certo tempo. No entanto, não poderia deixar de fazer menção à solenidade de Pentecostes, a festa das línguas, da unidade, da compreensão humana, celebrada ontem.

Há duas narrativas míticas que muito me agradam: a da Torre de Babel e a de Pentecostes. Isso porque ambas tratam do fenômeno das línguas e de sua compreensão. Em Babel, temos a multiplicação das línguas, para que o homem – conhecedor até então de um único idioma – não cometa a loucura de trabalhar por algo inútil. A construção de uma torre que alcançasse o céu era despropositada, visto que Deus tem que se abaixar para que possa ver a tal construção. “Mas o Senhor desceu para ver a cidade e a torre que construíram os filhos dos homens.” (Gn 11, 5) Em Pentecostes, há o inverso. Sem haver uma unidade linguística, acontece o entendimento, que produz algo novo na multiplicidade dos idiomas.

Sendo professor de Língua Portuguesa, não posso deixar de fazer um contraponto entre o Pentecostes feito pela Linguística moderna, que é uma ciência autônoma, e a Babel, a confusão, causada por uma reportagem, no mínimo leviana, da revista Veja. Com o título de “Os adversários do bom português”, a reportagem, de duas páginas, é exemplo de texto babélico: gerador de confusão.

O texto faz referência ao livro Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, e o acusa de propagar ideias de falsos intelectuais, sem definir muito bem quem sejam eles. A reportagem induz o leitor ao equívoco de imaginar que a obra de Heloísa Ramos ensina os alunos a falar "errado," desprezando a norma padrão. Isso não é verdade, o livro defende – em consonância com os estudos linguísticos – uma suposta supremacia da linguagem oral sobre a linguagem escrita, substituindo conceitos de "certo e errado" (tão anacrônicos) por "adequado ou inadequado". A partir daí, frases com “erros” de português como "nós pega o peixe" poderiam ser consideradas corretas em certos contextos. De maneira alguma o livro promove o ensino das formas não-padrão, pelo fato simples e óbvio de que elas já são conhecidas pelo alunado. O texto de Veja é Babel.

O livro foi adotado pelo MEC, portanto indicado por professores que estão nas salas de aula, conhecem a realidade dos estudantes e dominam o que ensinam. Ao criticar a escolha de profissionais de maneira tão imprudente, colocou-se em questão o discernimento de inúmeros profissionais por causa de uma visão sem fundamento racional, apenas baseada em senso comum.

Ao falar de preconceito linguístico – que é fato, e não hipótese acadêmica –, a reportagem afirma ser isso uma estupidez. Para dar ares de autoridade, o texto de Veja se apoia em Evanildo Bechara, gramático conceituado e integrante da Academia Brasileira de Letras (como José Sarney e Paulo Coelho). Ao mencionar o linguista Marcos Bagno, cujo estudo sobre o tema é respeitado por ser trabalho sério de pesquisa, as repórteres o chamam de “um certo” Bagno, além de expoente dos “talibãs da linguística”. Bagno é professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), escritor premiado de obras literárias e educacionais. O modo como foi descrito pelo texto de Veja só revela a falta de, no mínimo, respeito pelo estudioso. Ele sequer foi consultado, como também não foi Heloísa Ramos. Novamente temos confusão, babel.

Ao considerar acadêmicos como talibãs da linguística e preguiçosos mentais, o texto promove uma inversão de papéis que é falsa. Vejamos, talibãs são integrantes de um movimento radical religioso que interpreta o Alcorão ao pé da letra, inclusive matando para impor sua crença. Não há espaço para senso crítico nesse fanatismo. Os talibãs, dessa forma, seriam bem mais próximos dos puristas gramatiqueiros que não aceitam arredar um passo do que diz as sagradas gramáticas, apesar de elas possuírem incontáveis incongruências entre si. Comparem a Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara, e a Nova gramática do português contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Algumas vezes se contradizem. Não digo que essas obras não sejam compêndios de respeito, mas elas não dão conta de toda a vida que há no idioma. Aula de português não pode se restringir à aula de gramática ou, pior, de gramatiquês. Bem diferente é o trabalho dos linguistas, cientistas que se debruçam sobre o fenômeno das línguas para compreendê-las e explicá-las sem dogmatismos.

A reportagem de Veja, e de outros setores da mídia, gerou uma confusão cujos ecos ouvi na Assembleia Legislativa de meu estado, o Ceará. Percebi como aqueles que se pronunciavam contra o livro Por uma vida melhor não tinham sequer lido duas das mais de cem páginas do volume, em que a gramática padrão, de maneira alguma, foi colocada no lixo. Ao ler o texto de Renata Betti e Roberta de Abreu Lima, senti-me como alguém diante de um texto sobre medicina escrito não por médicos, mas por pacientes que se diagnosticam com base em pesquisas na Internet.

Ontem foi Pentecostes, certamente um senhor que conheço, de mais de 90 anos, bem lúcido e saudável, deve ter ido à Capela de São José, em meu antigo bairro, para celebrar essa solenidade. Seu João Sebastião – esse é seu nome – aprendeu a ler com mais de 50 anos através da Bíblia.  Semianalfabeto, seu João Sebastião gosta de, ao fim da missa, dar uma pequena mensagem. Quando isso acontece, pouquíssimos na igreja não reclamam. Não gostam de escutar seu João falar. “Um analfabeto desses, não sabe nem pronunciar as palavras direito. Que chatice!” – é o que dizem costumeiramente. Eu gosto de ouvir o seu João. Sua fala, trôpega na sintaxe e na ortoepia, possui uma coerência e uma coesão admiráveis para alguém que lê tão pouco. Ele se aproveita das leituras bíblicas da celebração e, com metáforas de seu trabalho – ele ainda é agricultor –, constrói um discurso singular. Mas seu João não domina a gramática dita culta, seu João é inculto (será?), talvez por isso ele não seja escutado. Se seu João dominasse a gramática, ele não sofreria esse preconceito linguístico. Todos respeitam a gramática, gostaria que todos respeitassem a língua inteira e seus falantes.

Ao seu João dedico esta postagem.



Abaixo, sugiro alguns textos que ajudam na desconstrução da Babel e na aproximação de um Pentecostes.  Se a confusão se faz em duas páginas, a unidade precisa de bem mais espaço. Construir sempre é mais difícil.





Haddad diz que livro 'Por uma vida melhor' do MEC não preconiza erro gramatical

Eis a página que gerou tanta celeuma, mas que poucos leram. Fonte:http://blog.30porcento.com.br/