Babel

As palavras são uma fonte de mal-entendidos, já dizia o Príncipe de Exupéry. Façamos delas, então, os alicerces da Babel. Talvez cheguemos ao milagre das línguas, ao pentecostes. Words, words, words.

domingo, 26 de setembro de 2010

A Literatura e a Bíblia



O leitor tem o direito de gostar ou não de uma obra. Há quem prefira a leitura de A paixão segundo G. H., há outros que se agradam de Senhora. O leitor merece fazer suas escolhas livremente e evitar a leitura por obrigação. Como professor de Literatura, esse direito, porém, sofre limitações. Sendo um profissional, eu não posso somente ler o que quero ou o que gosto, preciso conhecer as diferentes obras e tentar analisá-las da melhor forma possível para mim. Já que eu trabalho com a linguagem e a arte literária, é importante conhecer o maior número de textos fundadores de nossa cultura ocidental. É sobre duas dessas obras que desejo comentar hoje, visto que tenho percebido certa ojeriza a elas por parte de alguns colegas de profissão.

No domingo passado, o jornal Folha de São Paulo lançou uma coleção intitulada Livros que Mudaram o Mundo. Entre eles, temos a Bíblia e o Alcorão, a serem divulgados em janeiro próximo. Acredito que, por muitos os considerarem livros inspirados pelo divino e referências para as três principais religiões atuais, a leitura desses textos seja, muitas vezes, restrita a uma leitura puramente religiosa. Isso é um engano lamentável, pois tanto um como o outro são exemplares perfeitos de Literatura. Além disso, sua importância na conjuntura internacional atual não nos dispensa de seu conhecimento, se quisermos melhor entender nosso mundo. Assim, o profissional da Literatura não pode prescindir do conhecimento desses textos.

A Bíblia, na verdade, não é um livro, mais uma coletânea de textos de variados gêneros. Somente nos cinco primeiros livros, encontramos obras-mestras da narrativa universal, desde relatos patriarcais serenos ou dramáticos ou patéticos a epopeia e contos fantásticos, entremeados de vários poemas. A sua aparente simplicidade não deve nos enganar, pois ocultam, diversas vezes, refinados recursos de estilo e sempre o sentido de transcendência vivida. Existem também obras ditas de historiografia, como Josué e Juízes, cuja simplicidade dos elementos da narrativa não oculta o estilo, que se abebera de material sonoro - aliterações, jogos de palavras, paranomásia, etc. – e esquemas numéricos riquíssimos em valores simbólicos. O texto bíblico também é rico de obras poéticas de relevada qualidade literária, tais como os Salmos, o Cântico dos Cânticos (poema erótico dos mais belos), o livro de Provérbios, os três Isaías.

Harold Bloom, crítico literário estadunidense, em seu livro Onde Encontrar a Sabedoria, menciona, no elenco de obras literárias que ele considera imprescindíveis para o homem ocidental, o Livro de Jó e o Eclesiastes. Victor Hugo, ao falar do Gênio em seu William Shakespeare, escreve textos muito belos sobre Jó, Ezequiel, Isaías, São João, São Paulo, colocando-os no mesmo panteão literário que Ésquilo, Sófocles, Dante, Rabelais, Cervantes e... Shakespeare. O autor de Os Miseráveis chama-os de “gigantes imóveis do espírito humano”. E vai além, escreve que “cada qual representa toda a soma de absoluto que o homem pode realizar”. É claro que essas citações, fora do contexto, parecem exageradas. Sugiro, pois, a leitura, para que haja uma melhor apreciação do pensamento de Victor Hugo, de sua obra acima mencionada.

Há também, em alguns livros bíblicos, gêneros dentro de gêneros, como as parábolas de Cristo, que se encontram nos evangelhos. Menciono a Parábola do Filho Pródigo, verdadeira pérola da literatura semita. As cartas de São Paulo também apresentam, ao longo do texto, canções de destacada poesia. Quero dsetacar  aqui um livro de estrutura bem diferente entre os textos neotestamentários: o Apocalipse. Ele possui imagens sensoriais várias e intrincado jogo de símbolos. Vale a pena conhecê-lo.

Intento aqui mostrar que a Bíblia, a despeito de seu valor como livro sagrado, é exemplar de fina literatura, devendo, portanto, ser lido por todos, principalmente por profissionais da área. Quanto ao Alcorão, não me estenderei, visto que só recentemente comecei a leitura desse texto. Como não sei árabe, certamente perco muito dos recursos estilísticos que o constituem e que me são explicados – alguns − em notas de rodapé. Tendo sido escrito para a declamação, é estranho para mim, acostumado a narrativas modernas, apreciá-lo devidamente. Conta-se que um importante senhor oriental converteu-se ao Islã por ouvir a recitação de algumas suras, pois, segundo tal senhor, somente Deus poderia ter produzido tão grande beleza.

Espero que esses pequenos comentários aticem a vontade de conhecer esses textos e que a oportunidade de ler realmente essas obras não se perca. Caso queiram aprofundar o assunto discutido aqui, sugiro abaixo algumas fontes de leitura. 


 
Essa tradução da Bíblia proriza os aspectos estilísticos e literários do texto. Com uma grande quantidade de notas, essa tradução destina-se ao estudo.


Essa nova reedição do Alcorão tem  a tradução de Mansur Challita. O trabalho de versão do árabe para o português feita por Challita foi muito elogiado pelos críticos.

Em O código dos códigos: a Bíblia e a literatura, Northrop Frye, crítico canadense, faz uma análise de uma das obras mais importante da cultura ocidental, não com um olhar religioso, mas sim analisando-a como um texto literário.


Embora os autores bíblicos se contradigam, suas visões múltiplas convivem num mesmo livro. Para Karen Armstrong, este é um indício claro de que toda interpretação da Bíblia significa necessariamente abertura de espírito. Assim, ela fornece uma narrativa necessária para combater o pessimismo de nosso mundo tão cheio de conflitos. A Bíblia faz parte da coleção Livros que Mudaram o Mundo, reunindo biografias de títulos que modificaram sua época e, até hoje, influenciam nossa forma de pensar.


Quando Maomé orava em uma caverna, conta-se que ouviu uma voz que lhe passou uma série de revelações. Essas palavras transformaram profundamente a vida desse mercador analfabeto,e o modo como pensava sobre si mesmo, a sociedade e o mundo. Após a morte do Profeta, seu primo Ali trabalhou para transformar em livro as revelações oralmente transmitidas e recitadas. Todas as versões existentes foram sistematizadas em um texto sagrado, que permaneceu praticamente inalterado até hoje: o Corão. Historiador da religião, Bruce Lawrence descreve como a obra fascinou e guiou milhões de adeptos e mostra como o significado desse livro milenar é basicamente a paz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário