Babel

As palavras são uma fonte de mal-entendidos, já dizia o Príncipe de Exupéry. Façamos delas, então, os alicerces da Babel. Talvez cheguemos ao milagre das línguas, ao pentecostes. Words, words, words.

domingo, 19 de setembro de 2010

Da queima de dois livros.




Na semana passada, fizemos alguns comentários sobre intolerância. Durante esta semana, soubemos de alguns casos que nos remetem a essa temática. Alex Stewart, um professor da Austrália, rasgou algumas páginas do Alcorão e da Bíblia e as fumou, para saber qual dos dois queimava melhor. Dias antes, Terry Jones, pastor americano, tinha desistido dos planos de pôr fogo no Alcorão. Tanto o professor quanto o líder religioso consideraram as queimas como formas de protesto legalmente amparadas pelo direito à liberdade de expressão.

Esse direito é uma grande conquista do homem. Aqui no Brasil, percebemos isso quando nos lembramos da ditadura pela qual o País passou. A ausência da liberdade de expressão propiciou a expatriação de grandes brasileiros, o desaparecimento de inúmeros cidadãos e a morte de vários outros. Tal liberdade é garantia de que a voz da denúncia não será abafada. Certamente, devemos proteger sempre esse direito, pois, se ele não existir, como revelar pontos de vista distintos e como defender a democracia e o Estado de direito? A liberdade de expressão, ao promover o debate livre e aberto, é capaz de evitar erros graves e promover a justiça. Qualquer ação que a tente restringir deve ser evitada e combatida.

Essa liberdade, no entanto, não pode degenerar-se em agressão pura e simples. Proteger a liberdade de expressão exige também que, ao mesmo tempo, se impeça o discurso que incita à violência. Nos dois casos supracitados – o do professor e o do pastor −, não se abriu caminho ao diálogo nem à discussão produtiva, o que se viu foram manifestações – muitas delas violentas – contra a queima dos livros. No Afeganistão, milhares protestaram contra os Estados Unidos e mostraram-se agressivos aos cristãos, havendo inclusive mortes. No Irã, o presidente Ahmadinejad utilizou a ideia de queimar o Alcorão para hostilizar os sionistas. Em todo o mundo, houve sérias críticas aos atos, no mínimo, irresponsáveis de Alex Stewart e Terry Jones. O Vaticano e a Liga Árabe criticaram o enfoque fanático e destruidor do pastor. Clérigos muçulmanos libaneses afirmaram que o ato do religioso americano incendiaria mais os ânimos dos islamitas fanáticos, motivando-os a ataques contra ocidentais. Vários chefes de Estado deploraram a destruição desses livros. Mesmo as relações entre Ocidente e Oriente sofreram avarias devido a esses imbróglios causados por indivíduos que usaram irresponsavelmente sua liberdade de expressão.

Contra o fanatismo e o erro, agressões e humilhações não resolvem o problema; pelo contrário, pioram-no. Na África do Sul, quiseram queimar exemplares da Bíblia como retaliação ao gesto do pastor Jones. Após mostrarem que o Alcorão prega a importância do respeito ao livro judaico e cristão, desistiram do intento. Esse pequeno – e talvez simples – exemplo ilustra bem a ineficácia de protestos ofensivos como os comentados neste texto. O diálogo pautado na razão e no bom-senso é capaz de obter significativos resultados. A argumentação bem fundada e a boa vontade também são apropriadas para lidar com questões desse tipo, apesar de, muitas vezes, ser difícil o completo êxito.

O professor da Austrália disse, explicando sua atitude, que ele queria fazer uma piada. Queimar algo de extrema importância para muitas pessoas não pode ser, em situação alguma, uma brincadeira sem importância, visto que tal ação mostra um desrespeito a um povo, à sua cultura, às suas esperanças e, muitas vezes, à sua identidade. Se o que se quer é criticar e combater o fanatismo – principalmente o militante e assassino −, não é através de ações como as de Jones e Stewart que se chegará a isso. Liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de agressão.



3 comentários:

  1. Bom texto.
    É lamentável que atitudes tão pequenas prossigam em um século de tanto esclarecimento, da aldeia global...

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  2. Numa rua de Nova York, um sujeito resolve atear fogo a um volume de Bíblia em frente a um igreja; ao mesmo tempo, em Teerã, um outro decide carbonizar um exemplar do Corão no primeiro degrau de uma mesquita. Que acontecerá com eles?

    Certo é que não atrairão muita simpatia. O nova-iorquino será objeto de críticas, talvez sofra um processo (que quase certamente ganhará) e, quando muito, passará pelo aborrecimento de levar uma multa por poluir uma via pública.

    Enquanto o americano cruza os braços à espera de que o policial lhe entregue o ticket da multa, nosso colega de Teerã, se não já não tiver sido esquartejado por uma multidão enfurecida, estará sendo gentilmente conduzido pelos cabelos à viatura de polícia que o levará ao seu cômodo numa penitenciária cinco estrelas da qual (não resta dúvida) sairá apenas para ser executado.

    Se você pretendesse se manifestar publicamente contra uma idéia estabelecida, onde você preferiria estar?

    Claro, na opinião deste comentarista, queimar livros, sejam eles quais forem, sempre será rematada estupidez. Entretanto é consolador saber que há locais no mundo em que a liberdade de expressão nos assegura o direito de sermos estúpidos da maneira que mais nos agrade, desde que nossa estupidez não fira o direito alheio. Naturalmente que ninguém gosta de ver seus mais caros ideais sendo alvo de protestos “inflamados”, por assim dizer; mas este é o preço que pagamos pelo direito de poder levar a cabo algo tão simples quanto importante: discordar.

    Não gostou? Ora, quem disse que os direitos vêm de graça? Quem disse que eles não abrem espaço para o uso irresponsável e agressivo? Abrem, e isso é ruim; mas passa a ser um mal menor quando se pensa nas alternativas.

    Porque na Austrália um homem queimou um exemplar de seu “livro sagrado”, vários muçulmanos hostilizaram cristãos no Afeganistão, o que é, de fato, lastimável; mas que espécie de sociedade teríamos nós se bastasse uma turba enfurecida para fazer de uma idéia algo inatacável?

    Ainda que seja imensamente mais difícil para um Estado serenar os ânimos uma multidão furiosa do que proibir um único homem de fumar o Corão, a simples idéia de ceder neste ponto ante a truculência de fanáticos irados traz em si o germe de um processo liberticida que a história já provou ser bem mais nefasto e do qual vemos vários exemplos ainda hoje.

    Para quem abusa de sua liberdade e expressão, há o Código Penal, os tribunais, o direito de resposta, as indenizações e a até a cadeia. O que não se pode fazer é atropelar toda uma conquista civilizatória porque há pessoas dispostas a agir com violência cada vez que seus ideais forem atacados, seja este ataque agressivo ou não.

    A Voltaire atribui-se esta frase, à qual a ocasião recomenda um pequeno adendo:

    “Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-las”... e de queimá-las!

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  3. Caro Alex,
    É uma satisfação tê-lo como comentarista neste blog. Acredito que você muito contribuirá com nossos diálogos. Assim, espero que comente outros textos postados neste espaço. Seu comentário acima é lúcido e pertinente. Sua afirmação de que os direitos não vêm de graça e de que seu uso irresponsável e agressivo é ruim reforça a tese principal de nosso texto. A liberdade de expressão é um grande privilégio, e grandes privilégios trazem grandes responsabilidades. Desejo que todos que gozem desse direito possam usufruí-lo da melhor maneira possível.

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