Babel

As palavras são uma fonte de mal-entendidos, já dizia o Príncipe de Exupéry. Façamos delas, então, os alicerces da Babel. Talvez cheguemos ao milagre das línguas, ao pentecostes. Words, words, words.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Eu renuncio a deus.



O fato ocorreu há seis dias, no Paquistão. Em termos jornalísticos, é caso velho, não é notícia. No entanto, sua caduquice midiática não apaga a gravidade do ocorrido: um garoto de 12 anos, vestindo uniforme escolar, detonou explosivos que trazia consigo, matando dezenas de soldados. De acordo com a polícia, o ataque ocorreu quando as vítimas rezavam. Que mentira contaram para essa criança a ponto de fazê-la abandonar sua vida para matar outros?

Lembro-me de Alpha Blondy cantando, em voz africana com idioma colonizador, os versos: Comment peut-on envoyer des enfants de Dieu, tuer d'autres enfants de Dieu au nom de Dieu? A interrogação do cantor, além de perplexidade, suscita reflexão. Hoje, em nome de deus, cometem-se abominações.
Que deus sedento é esse que exige tanto sangue para sua embriaguez? Certamente o mesmo que suscitou a Cruzada dos Meninos e que ri quando a veste sacerdotal encobre o corpo da criança a fim de violá-la. É o mesmo que atrai os pequeninos para terem seu corpo perfurado por agulhas, mutilado, emasculado ou destroçado por uma bomba, prometendo algo que ele, deus, sabe ser mentira.

Não nos enganemos, existe veneno por entre as dobras da casula. Há manchas de dedos ensanguentados nas páginas da Bíblia do pastor e da Torá do rabino. Dentro do Alcorão, colocaram uma faca. Em meio ao culto, uma sombra se move: o espírito desse deus está à espreita. Milhares de sacerdotes dessa divindade incubem-se de arregimentar suas vítimas: oferecem ilusões, cerceam sua liberdade, destroem suas esperanças, aniquilam suas vidas. Esse deus e seus enviados impingem-lhe a infelicidade, o medo, a angústia, o fanatismo, a morte. Uma procissão de crianças e jovens, adultos e idosos caminha por uma via onde aqueles que falam de paraíso não enxugarão nenhuma das lágrimas desses caminhantes. 

Vem-me a mente a personagem saramaguiana de Pastor, dizendo ao jovem galileu que matou uma ovelha para saciar o desejo de seu deus: 

“...Pastor olhou-o fixamente e perguntou, A ovelha, e ele respondeu, Encontrei Deus, Não te perguntei se encontraste Deus, perguntei-te se achaste a ovelha, Sacrifiquei-a, Porquê, Deus estava lá, teve de ser. Com a ponta do cajado, Pastor fez um risco no chão, fundo como rego de arado, intransponível como uma vala de fogo, depois disse, Não aprendeste nada, vai.”

Qual o nome desse deus voraz e iníquo? Jesus, Javé, Jeová, Alá. Esses são alguns de tantos nomes que pronunciam para justificar o ódio e a destruição. Mas é mentira, esse deus não possui tais nomes. Ele é o sem nome. Ele confunde-se com o próprio homem e habita seu coração. Ele é o que é, quis cor (péssimo, meu latim), “antropocardio”.

A esses emissários de deus que maculam essas crianças, sugiro a sentença de certo hebreu: amarrem-lhes uma mó no pescoço e joguem-nos ao mar.

A esse deus, eu o renuncio.



Dedico esta postagem a Ciro de Tarso, morto, ainda criança, por um juiz que lhe bateu com a cabeça nas escadas do tribunal. Eu a dedico também ao jovem paquistanês, tão vítima quanto suas vítimas. A Zilda Arns, por sua dedicação à infância.


6 comentários:

  1. "A esse deus, eu o renuncio."

    Concordo com você Vandemberg.
    Honestamente, eu não imagino de onde é que algumas pessoas tiram uma idéia tão errônea de deus.

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    Não terás compaixão: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé. (Deuteronômio 19,21)

    Eis que o SENHOR vem com o fogo, seus carros parecem tempestade, vem desabafar o calor de seu ódio, e sede de vingança com chama de fogo. (Isaías 66,15)

    O justo se alegrará ao ver a vingança; lavará seus pés no sangue dos maus. (Salmos 58,11)

    Derrama sobre eles tua ira, e o furor da tua cólera os persiga. (Salmos 69,25)

    Não terás piedade dele; assim eliminarás de Israel o derramamento de sangue inocente e serás feliz. (Deuteronômio 19,13)

    Ajuda ao compassivo, mas não acolhas o pecador, pois Deus dará o castigo aos ímpios e pecadores, guardando-os para o dia da vingança. (Eclesiástico 12,4)

    Lançou contra eles o fogo da sua ira, a cólera, a indignação, a desgraça, todo um exército de anjos do mal. (Salmos 78,49)

    Deus, que me concedes a vingança, que submetes a mim os povos, (II Samuel 22,48)

    Exercerei contra eles vingança terrível, castigando-os implacavelmente. Saberão que eu sou o SENHOR quando lhes aplicar minha vingança”. (Ezequiel 25,17)

    Pois em Deus está a misericórdia mas também a ira: é paciente, deixa-se abrandar, mas também derrama sua cólera. (Eclesiástico 16,12)

    Executa a vingança contra este homem e seu exército, e caiam sob a espada. Lembra-te de suas blasfêmias e não lhes concedas trégua!” (I Macabeus 7,38)

    E quem blasfemar o nome do SENHOR será punido de morte. A comunidade toda o apedrejará. Seja estrangeiro ou nativo do país, deverá morrer por ter blasfemado o nome do SENHOR. (Levítico 24,16)

    “Expulsa o blasfemador para fora do acampamento. Todos os que o ouviram ponham-lhe a mão sobre a cabeça, e a comunidade toda o apedrejará. (Levítico 24,14)

    Então o SENHOR disse a Moisés: “Este homem deve ser condenado à morte. A comunidade toda o apedrejará fora do acampamento”. (Números 15,35)

    Nem sua prata nem seu ouro serão capazes de livrá-los. No dia da ira do SENHOR, ele incendiará o país inteiro, sim, ele exterminará todos os cidadãos do país. (Sofonias 1,18)

    Todo aquele que não jejuar nesse dia será eliminado do meio do povo.30.E quem nesse dia fizer qualquer trabalho, eu o exterminarei do meio do povo. (levítico 23,29-30)

    Despejarei sobre ti a minha indignação, soprarei contra ti com o fogo de minha fúria. Vou entregar-te nas mãos de homens cruéis, mestres da destruição. (Ezequiel 21,36)

    “Vede pois que eu, e só eu sou Deus, e não há outro Deus além de mim. Eu causo a morte e restituo a vida, sou eu que firo e sou eu que curo. Não há quem liberte de minha mão. Levanto a mão para o céu e juro por minha eternidade:Quando afiar o gume da espada e tomar em mãos o juízo, tirarei vingança de meus inimigos e retribuirei aos que me odeiam. Embeberei de sangue minhas flechas e minha espada se fartará de carne, do sangue dos mortos e dos cativos, das cabeças dos chefes inimigos’. (Deuteronômio 32,39-42)

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    PS.: É claro que os sanguinários a quem você se refere não conseguiram interpretar corretamente nenhuma destas belas mensagens de paz.

    Abraço.

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  2. Caro "Vandimborg", como diz o aluno lá...rsrs...grande coragem em postar palavras que vão de encontro a isso que hoje os nossos homens chamam religiosidade; mais, palavras que desdenham da imagem do Deus que elas pregam. Mas o que as inspira a pregarem assim esse Deus? Vc responde: seu coração. E nessa concepção se entenda coração como sendo o baú onde o homem guarda todas as emoções, e essas redesenhadas pelo que aqui chamo de pseudorrazão...vou definir esse termo: pseudorrazão seria mais ou menos a "base racional" que o mestre islãmico construiu na cabeça do menino de 12 anos que se explodiu.
    Cara, que bom que aqui você tirou seu véu. finalmente uma postagem em que se v~e não apenas um exercício de meras palavras bem encaixadas, mas a alma de alguém que não perde a esperança de sempre refletir sobre o que crê. parabéns!

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  3. Caro Alex,

    O meu texto não se refere a uma situação restrita ao judaísmo, como as suas citações parecem mostrar. Independentemente de qual seja o credo – ou mesmo outras ideologias – observamos o mesmo “deus” manifestando-se.
    Gostei do método utilizado por você para produzir ironia. Ao retirar as citações de seu contexto, não só discursivo, mas histórico e sociológico, temos a impressão que elas afirmam verdades perpétuas. Isso é bem próprio dos ditos fundamentalistas, que não aceitam modificar uma vírgula de suas verdades e consideram o texto sagrado como intocável. Seria interessante mencionar aqui que nem todos os fundamentalismos se baseiam em livros sagrados.
    Basta citar o Sermão da Montanha, o livro de Isaías e algumas suras, por exemplo, para mostra outra imagem do que se chama divindade. A visão do que se chama de Deus muda com o tempo e com a experiência humana, pois o homem não é imutável. O que era resposta para a humanidade ontem, não o é para hoje. Como os fundamentalistas, não podemos viver o hoje com certos valores de ontem se esses valores perderam sua razão de ser hoje. Assim também não se pode analisar uma realidade passada com os olhos do presente para atribuirmos um juízo de valor.
    No entanto, o deus a que me refiro na postagem extrapola os limites da religião, do tempo e do espaço. Infelizmente, ele age em nosso país e em nossa sociedade, mas com outros métodos, talvez bem mais requintados, independentemente se se acredita ou não na existência de Deus.
    Para um estudo mais aprofundado das origens do fundamentalismo na modernidade e da evolução da imagem da divindade nas três religiões monoteístas, sugiro a leitura respectivamente de Em nome de Deus e de Uma história de Deus, da historiadora inglesa Karen Armstrong.

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  4. Vandemberg,

    Agradeço sua condescendência ao me recomendar a leitura de Karen Armstrong.

    Já vi excelentes comentários sobre esta senhora. Dentre eles, há um intitulado “Porque Karen Armstrong não consegue defender a religião”, e está num blog religioso. Transcrevo alguns trechos interessantes. (Veja na íntegra em: http://questaodeconfianca.blogspot.com/2011/02/o-porque-karen-armstrong-nao-consegue.html)

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    A revista Veja desta semana (edição 2202, ano 44, no 5) comenta a chegada do livro Em defesa de Deus, da ex-freira Karen Armstrong. A matéria intitula-se O paraíso perdido da fé (p. 106-107) e é assinada por Jerônimo Teixeira. Há mais de um ano, nosso blog comentou a tentativa frustrada (e frustrante) de Armstrong em defender a fé cristã, (...)

    Se a fé judaico-cristã se resume à história espiritual de um povo, os neoateus estariam cobertos de razão em descartá-la como fonte de conhecimento real, orientação moral e essencialmente significativa para a experiência humana atemporal.
    (...)
    Quando Karen Armstrong faz afirmações altamente liberais sobre o texto, passa por cima os estudos mais recentes de crítica textual. Teixeira percebe isso. Ele comenta, ironicamente, sobre as afirmações taxativas da autora sobre datação (recente, segundo os liberais) e mentalidade dos textos bíblicos: “Não fica claro como Karen obteve acesso privilegiado à mente dos redatores do Antigo Testamento” (p. 107). A tentativa de justificar o Cristianismo protagonizada pela autora de Em defesa de Deus acaba tendo uso contrário do pretenso na mão daqueles que querem atacar à fé.

    Felizmente, os argumentos dela são tão irrazoáveis que, se não servem para defender a fé, dada sua inconsistência, se usados para o fim inverso, acabam sendo facilmente rebatidos por quem se encontra bem informado. (...)

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    Então, chame-me de irresponsável, mas acho que posso me dar o direito de não dedicar muito tempo a alguém cujas obras muitos amigos reprovam e todos os adversários desprezam...

    No mais, é muito fácil defender o que a bíblia ainda tem de palatável e depois falar em “contexto discursivo, histórico e sociológico” para justificar o que nela há de repugnante. É muito engraçado (e conveniente) que a “palavra de deus” seja tão clara e incontroversa em alguns trechos e tão relativa manipulável em outros. Hoje alguns defendem o que consideram ser o deus da interpretação “certa”, mas e daqui a alguns anos? Qual será o deus “certo” e que tipo de texto renunciador suscitará contra o “errado”?

    Pelo menos, nessas horas, alguns descobrem que não precisam de interpretação nenhuma. Talvez porque todas estejam erradas...

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  5. Caro Alex,

    Os livros sugeridos foram lidos por mim e, por isso, afirmo serem esclarecedores das questões relativas a fundamentalismo religioso e evolução do conceito de Deus. São obras de caráter científico feitos por uma historiadora. O livro mencionado por você – Em defesa de Deus -, ainda não conheço, mas procurarei fazer essa leitura. Conhecendo algumas obras de Armstrong, penso que as afirmações dela, de caráter científico, não se coadunam com a visão de um site religioso, cujas verdades baseiam-se em outros pressupostos. Acredito que a leitura da autora não seja inútil, visto que busca uma compreensão da religião como fenômeno especificamente humano. Já que hoje observarmos um recrudescimento do espírito religioso – com expressões, muitas vezes, extremistas aqui no Brasil e muito violentas em outros lugares do mundo – acredito ser importante entender o que esse tipo de religiosidade significa, o que pode nos mostrar de nossa cultura ocidental e como tornar a vivência religiosa uma expressão de liberdade, e não de opressão. Para isso, há vários outros historiadores, como também filósofos, sociólogos e cientistas políticos, a tratar desse assunto.

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  6. Quantas palavras inúteis, senhores, diante do horror e da dor de centenas de vidas desperdiçadas...

    Luciana Sousa

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