Alguns alunos me têm perguntado o que significa senso comum.
O interesse é despertado por o ENEM orientar que se evitem, na redação,
argumentos que se baseiam nessa forma de conhecimento.
O site Mundo Educação[1]
define senso comum como a compreensão de todas as coisas por meio do saber
social, ou seja, é o saber que se adquire através de experiências vividas ou
ouvidas do cotidiano. No senso comum, não é necessário que haja um parecer
científico para que se comprove o que é dito, é um saber informal que se
origina de opiniões de um determinado indivíduo ou grupo que é avaliado
conforme o efeito que produz nas pessoas. Enquanto a ciência busca a verdade em
todas as coisas por meio de testes e comprovações, o senso comum é utilizado
antes mesmo que se saiba se o método empregado traz o que se espera. Muitas
vezes, o senso comum não resiste a uma breve análise.
Um exemplo de senso comum que analisei recentemente diz
respeito à religião. Quando se fala em credos, principalmente o cristão,
imagina-se uma ideologia que prega o bem-estar do ser humano, a bondade, a
compaixão e tantos outros valores elevados. Isso, porém, não se sustenta quando
se avaliam as ações dos muitos (a maioria?) que professam essa fé. Não me
refiro às Cruzadas ou à Inquisição, com seus assassinatos impunes, mas às
atitudes de fiéis de várias congregações que, de maneira desonesta, ofendem o
próximo porque o outro não compactua com suas crenças. Se há exemplos de amor ao
ser humano no Cristianismo, eles também existem em organizações que sequer
professam uma religião. Existem, no entanto, nessas igrejas cristãs, atos de extrema
maldade, desde exploração monetária a acobertamento de pedófilos, desde
incentivo à agressão a ações de violência contra os outros, entre vários outros
fatos. Embora não pareça, pois contradiz o senso comum, a religião também é
fonte de males. Muitos deles ocasionados por normas morais que se opõem a
valores estritamente humanos.
O filósofo Bertram Russell[2]
escreveu que a superstição é a fonte das normas morais. Segundo ele,
originalmente, certos atos eram tidos como desagradáveis aos deuses, sendo
proibidos por lei, pois poderiam atrair a ira divina sobre a comunidade.
Surgiu, assim, a noção de pecado, como algo que desagrada a Deus. Certamente,
uma pessoa lúcida, que não se contenta com o senso comum, não se satisfará com
a justificativa de que este ou aquele ato constitui pecado e pronto. Ela
investigará se tal ação verdadeiramente acarreta algum dano, ou se, pelo
contrário, o que ocasiona algum mal é crê-lo pecaminoso. A Igreja católica (isso
mesmo, o “c” é minúsculo) insiste em se evitar o uso de preservativos, mesmo
que isso contribua para a gravidez indesejada e a propagação de doenças
venéreas, entre elas a AIDS, que tanta dor traz às pessoas. Ela prega a
abstinência sexual para se evitar tais moléstias, embora saiba que a continência
não acontecerá, pois não é regra. E as mortes acontecerão. Ela condena o
controle de natalidade, o que faz com que haja nascimentos de crianças cujos
pais não têm condições de criá-las, propagando irresponsavelmente a miséria. As
igrejas cristãs, geralmente, condenam o divórcio, enquanto muitos –
principalmente muitas – são submetidos a um cotidiano frustrante e, não raro,
violento.
A realidade é que poucas pessoas, e igrejas, se importam em garantir a
felicidade alheia. Poucos se preocupam com quem passa fome, com quem não tem
onde morar ou o que vestir. Um número reduzido de crentes se envolve com a
ajuda desinteressada ao próximo. A maioria incomoda-se mais com a moralidade
sexual do outro do que com o que realmente interessa: suprir as necessidades
básicas do ser humano. Muitos que não são cristãos e/ou não professam um credo
cuidam do próximo muito bem, desinteressadamente. Carregar a Bíblia no braço é fácil, abandonar os
preconceitos e os rituais vazios, derivados do senso comum, e ocupar-se com o
bem coletivo é muito difícil. Aqui no Brasil, enquanto esbraveja contra a união
civil entre pessoas do mesmo sexo (observe que é união civil, não religiosa), por
exemplo, o Pastor Silas Malafaia não titubeia em pedir uma soma alta em
dinheiro mesmo para aqueles que estão desempregados e vivendo “de favor” [3]. Há pastores que ganham até 22 mil reais por
mês! Não imagino Dorothy Stang, que deu a vida pelos seus amigos, ganhado um
sexto desse valor, apesar de ela ser bem mais coerente com o que realmente
importa no Cristianismo.
Dorothy fez de sua crença ponte, acompanhou solidária a vida
de luta dos trabalhadores campesinos, sobretudo na região da Transamazônica, no
Pará. Defensora de uma reforma agrária justa, mantinha intenso diálogo com
lideranças camponesas, políticas e religiosas, na busca de soluções efetivas
para os conflitos relacionados à posse e à exploração da terra na Região
Amazônica. Em 2004, ela recebeu premiação da Ordem dos Advogados do Brasil
(seção Pará) pela sua luta em defesa dos direitos humanos. Ela falava de vida
em abundância, vida aqui e agora. Mataram Dorothy Stang, por defender o ser
humano.
Em contrapartida aos gestos humanitários de Stang, o discurso religioso feito no dia 13 de maio por
Charles Worley, pastor de
uma igreja batista de Maiden, na Carolina do Norte, é uma exaltação ao
ódio. Como se diz, a boca fala do que o coração está cheio. Falando em nome de
Deus, o eminente pregador disse: "Construam um grande cercado (...) e
ponham dentro todas as lésbicas, voem acima delas e atirem-lhes comida. Façam o
mesmo com os homossexuais e garantam que a cerca seja elétrica, para que não
possam sair... e em alguns anos morrerão [porque] não podem se
reproduzir".[4]
Baseando-se em uma moral sexual cunhada há milênios por um
povo semítico que defendia certos preceitos reprodutivos, que originou um senso
comum que estabelece regras para a prática da sexualidade, o pastor acredita
que deixar morrer é válido para defender essas regras morais. Ele fala de
morte. Muitos crentes fazem da Bíblia
uma cerca. Segundo o pastor – e tantos outros –, uma cerca elétrica.
Parafraseando a filósofa Marilena Chauí[5],
uma das principais características da atitude filosófica e racional é negativa,
isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos
fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao
estabelecido. Outra característica é positiva, isto é, uma interrogação sobre
o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os
comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o
porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e
não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações
fundamentais da atitude de quem não se alicerça no senso comum.
Postagem dedicada a A. Cruz e T. Mesquita, cujas conversas, quando sérias, valem a pena.
[1] Senso comum. Acesso em: 1º jun. 2012.
[2] RUSSEL, Bertran. No
que acredito.Porto Alegra: L&PM, 2007.
[3] Silas Malafaia pede trízimo de desempregado e o dinheiro do aluguel. Acesso em: 1º jun. 2012.
[4] Pastor americano sugere cercado elétrico para confinar gays. Acesso em: 1º jun. 2012.
[5]
CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
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