Devido à pesquisa do mestrado, não atualizo este blog há certo tempo. No entanto, não
poderia deixar de fazer menção à solenidade de Pentecostes, a festa das
línguas, da unidade, da compreensão humana, celebrada ontem.
Há duas narrativas míticas que muito me agradam: a da Torre
de Babel e a de Pentecostes. Isso porque ambas tratam do fenômeno das línguas e
de sua compreensão. Em Babel, temos a multiplicação das línguas, para que o
homem – conhecedor até então de um único idioma – não cometa a loucura de
trabalhar por algo inútil. A construção de uma torre que alcançasse o céu era
despropositada, visto que Deus tem que se abaixar para que possa ver a tal
construção. “Mas o Senhor desceu para ver
a cidade e a torre que construíram os filhos dos homens.” (Gn 11, 5) Em Pentecostes,
há o inverso. Sem haver uma unidade linguística, acontece o entendimento, que
produz algo novo na multiplicidade dos idiomas.
Sendo professor de Língua Portuguesa, não posso deixar de
fazer um contraponto entre o Pentecostes feito pela Linguística moderna, que é
uma ciência autônoma, e a Babel, a confusão, causada por uma reportagem, no
mínimo leviana, da revista Veja. Com o título de “Os adversários do bom português”, a reportagem, de duas páginas, é exemplo de texto babélico: gerador
de confusão.
O texto faz referência ao livro Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, e o acusa de propagar ideias
de falsos intelectuais, sem definir muito bem quem sejam eles. A reportagem
induz o leitor ao equívoco de imaginar que a obra de Heloísa Ramos ensina os
alunos a falar "errado," desprezando a norma padrão. Isso não é verdade, o livro
defende – em consonância com os estudos linguísticos – uma suposta supremacia
da linguagem oral sobre a linguagem escrita, substituindo conceitos de "certo
e errado" (tão anacrônicos) por "adequado ou inadequado". A
partir daí, frases com “erros” de português como "nós pega o peixe"
poderiam ser consideradas corretas em certos contextos. De maneira alguma o
livro promove o ensino das formas não-padrão, pelo fato simples e óbvio de que
elas já são conhecidas pelo alunado. O texto de Veja é Babel.
O livro foi adotado pelo MEC, portanto indicado por professores que estão
nas salas de aula, conhecem a realidade dos estudantes e dominam o que ensinam.
Ao criticar a escolha de profissionais de maneira tão imprudente, colocou-se em
questão o discernimento de inúmeros profissionais por causa de uma visão sem
fundamento racional, apenas baseada em senso comum.
Ao falar de preconceito linguístico – que é fato, e não
hipótese acadêmica –, a reportagem afirma ser isso uma estupidez. Para dar ares
de autoridade, o texto de Veja se apoia em Evanildo Bechara, gramático conceituado
e integrante da Academia Brasileira de Letras (como José Sarney e Paulo
Coelho). Ao mencionar o linguista Marcos Bagno, cujo estudo sobre o tema é
respeitado por ser trabalho sério de pesquisa, as repórteres o chamam de “um
certo” Bagno, além de expoente dos “talibãs da linguística”. Bagno é professor
do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), escritor premiado de
obras literárias e educacionais. O modo como foi descrito pelo texto de Veja só
revela a falta de, no mínimo, respeito pelo estudioso. Ele sequer foi
consultado, como também não foi Heloísa Ramos. Novamente temos confusão, babel.
Ao considerar acadêmicos como talibãs da linguística e
preguiçosos mentais, o texto promove uma inversão de papéis que é falsa.
Vejamos, talibãs são integrantes de um movimento radical religioso que
interpreta o Alcorão ao pé da letra, inclusive matando para impor sua crença. Não
há espaço para senso crítico nesse fanatismo. Os talibãs, dessa forma, seriam
bem mais próximos dos puristas gramatiqueiros que não aceitam arredar um passo
do que diz as sagradas gramáticas, apesar de elas possuírem incontáveis incongruências
entre si. Comparem a Moderna Gramática
Portuguesa, de Bechara, e a Nova gramática
do português contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Algumas vezes
se contradizem. Não digo que essas obras não sejam compêndios de respeito, mas elas
não dão conta de toda a vida que há no idioma. Aula de português não pode se restringir
à aula de gramática ou, pior, de gramatiquês. Bem diferente é o trabalho dos linguistas,
cientistas que se debruçam sobre o fenômeno das línguas para compreendê-las e
explicá-las sem dogmatismos.
A reportagem de Veja, e de outros setores da mídia, gerou
uma confusão cujos ecos ouvi na Assembleia Legislativa de meu estado, o Ceará. Percebi
como aqueles que se pronunciavam contra o livro Por uma vida melhor não tinham sequer lido duas das mais de cem
páginas do volume, em que a gramática padrão, de maneira alguma, foi colocada
no lixo. Ao ler o texto de Renata Betti e Roberta de Abreu Lima, senti-me como alguém
diante de um texto sobre medicina escrito não por médicos, mas por pacientes
que se diagnosticam com base em pesquisas na Internet.
Ontem foi Pentecostes, certamente um senhor que conheço, de
mais de 90 anos, bem lúcido e saudável, deve ter ido à Capela de São José, em
meu antigo bairro, para celebrar essa solenidade. Seu João Sebastião – esse é
seu nome – aprendeu a ler com mais de 50 anos através da Bíblia. Semianalfabeto, seu João Sebastião gosta de,
ao fim da missa, dar uma pequena mensagem. Quando isso acontece, pouquíssimos
na igreja não reclamam. Não gostam de escutar seu João falar. “Um analfabeto
desses, não sabe nem pronunciar as palavras direito. Que chatice!” – é o que
dizem costumeiramente. Eu gosto de ouvir o seu João. Sua fala, trôpega na
sintaxe e na ortoepia, possui uma coerência e uma coesão admiráveis para alguém
que lê tão pouco. Ele se aproveita das leituras bíblicas da celebração e, com
metáforas de seu trabalho – ele ainda é agricultor –, constrói um discurso
singular. Mas seu João não domina a gramática dita culta, seu João é inculto
(será?), talvez por isso ele não seja escutado. Se seu João dominasse a
gramática, ele não sofreria esse preconceito linguístico. Todos respeitam a
gramática, gostaria que todos respeitassem a língua inteira e seus falantes.
Ao seu João dedico esta postagem.
Abaixo, sugiro alguns textos que ajudam na desconstrução da
Babel e na aproximação de um Pentecostes.
Se a confusão se faz em duas páginas, a unidade precisa de bem mais espaço. Construir sempre é mais difícil.
Haddad diz que livro 'Por uma vida melhor' do MEC não preconiza erro gramatical
Eis a página que gerou tanta celeuma, mas que poucos leram. Fonte:http://blog.30porcento.com.br/ |
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