O leitor tem o direito de gostar ou não de uma obra. Há quem
prefira a leitura de A paixão segundo G. H., há outros que se agradam de Senhora. O leitor merece fazer suas escolhas livremente e evitar a leitura por
obrigação. Como professor de Literatura, esse direito, porém, sofre limitações.
Sendo um profissional, eu não posso somente ler o que quero ou o que gosto,
preciso conhecer as diferentes obras e tentar analisá-las da melhor forma possível
para mim. Já que eu trabalho com a linguagem e a arte literária, é importante conhecer
o maior número de textos fundadores de nossa cultura ocidental. É sobre duas
dessas obras que desejo comentar hoje, visto que tenho percebido certa ojeriza
a elas por parte de alguns colegas de profissão.
No domingo passado, o jornal Folha de São Paulo lançou uma coleção intitulada Livros que Mudaram
o Mundo. Entre eles, temos a Bíblia e
o Alcorão, a serem divulgados em
janeiro próximo. Acredito que, por muitos os considerarem livros inspirados pelo
divino e referências para as três principais religiões atuais, a leitura desses
textos seja, muitas vezes, restrita a uma leitura puramente religiosa. Isso é
um engano lamentável, pois tanto um como o outro são exemplares perfeitos de
Literatura. Além disso, sua importância na conjuntura internacional atual não nos
dispensa de seu conhecimento, se quisermos melhor entender nosso mundo. Assim,
o profissional da Literatura não pode prescindir do conhecimento desses textos.
A Bíblia, na
verdade, não é um livro, mais uma coletânea de textos de variados gêneros. Somente
nos cinco primeiros livros, encontramos obras-mestras da narrativa universal,
desde relatos patriarcais serenos ou dramáticos ou patéticos a epopeia e contos
fantásticos, entremeados de vários poemas. A sua aparente simplicidade não deve
nos enganar, pois ocultam, diversas vezes, refinados recursos de estilo e
sempre o sentido de transcendência vivida. Existem também obras ditas de
historiografia, como Josué e Juízes, cuja simplicidade dos elementos da
narrativa não oculta o estilo, que se abebera de material sonoro - aliterações,
jogos de palavras, paranomásia, etc. – e esquemas numéricos riquíssimos em
valores simbólicos. O texto bíblico também é rico de obras poéticas de relevada
qualidade literária, tais como os Salmos, o Cântico dos Cânticos (poema erótico dos mais belos), o livro de Provérbios,
os três Isaías.
Harold Bloom, crítico literário estadunidense, em seu livro Onde Encontrar a Sabedoria, menciona, no
elenco de obras literárias que ele considera imprescindíveis para o homem
ocidental, o Livro de Jó e o Eclesiastes. Victor Hugo, ao falar do Gênio em seu
William Shakespeare, escreve textos muito
belos sobre Jó, Ezequiel, Isaías, São João, São Paulo, colocando-os no mesmo panteão
literário que Ésquilo, Sófocles, Dante, Rabelais, Cervantes e... Shakespeare. O
autor de Os Miseráveis chama-os de “gigantes
imóveis do espírito humano”. E vai além, escreve que “cada qual representa toda
a soma de absoluto que o homem pode realizar”. É claro que essas citações, fora
do contexto, parecem exageradas. Sugiro, pois, a leitura, para que haja uma
melhor apreciação do pensamento de Victor Hugo, de sua obra acima mencionada.
Há também, em alguns livros bíblicos, gêneros dentro de
gêneros, como as parábolas de Cristo, que se encontram nos evangelhos. Menciono
a Parábola do Filho Pródigo, verdadeira pérola da literatura semita. As cartas de São
Paulo também apresentam, ao longo do texto, canções de destacada poesia. Quero dsetacar aqui um livro de estrutura bem diferente entre os textos neotestamentários: o Apocalipse. Ele possui imagens sensoriais várias e intrincado jogo de símbolos. Vale a pena conhecê-lo.
Intento aqui mostrar que a Bíblia, a despeito de seu valor
como livro sagrado, é exemplar de fina literatura, devendo, portanto, ser lido
por todos, principalmente por profissionais da área. Quanto ao Alcorão, não me estenderei, visto que só
recentemente comecei a leitura desse texto. Como não sei árabe, certamente perco
muito dos recursos estilísticos que o constituem e que me são explicados –
alguns − em notas de rodapé. Tendo sido escrito para a declamação, é estranho
para mim, acostumado a narrativas modernas, apreciá-lo devidamente. Conta-se
que um importante senhor oriental converteu-se ao Islã por ouvir a recitação de
algumas suras, pois, segundo tal senhor, somente Deus poderia ter produzido tão
grande beleza.
Espero que esses pequenos comentários aticem a vontade de
conhecer esses textos e que a oportunidade de ler realmente essas obras não se perca.
Caso queiram aprofundar o assunto discutido aqui, sugiro abaixo algumas fontes
de leitura.
Essa tradução da Bíblia proriza os aspectos estilísticos e literários do texto. Com uma grande quantidade de notas, essa tradução destina-se ao estudo.
Essa nova reedição do Alcorão tem a tradução de Mansur Challita. O trabalho de versão do árabe para o português feita por Challita foi muito elogiado pelos críticos.
Em O código dos códigos: a Bíblia e a literatura, Northrop Frye, crítico canadense, faz uma análise de uma das obras mais importante da cultura ocidental, não
com um olhar religioso, mas sim analisando-a como um texto literário.
Embora os autores bíblicos se contradigam, suas visões múltiplas
convivem num mesmo livro. Para Karen Armstrong, este é um indício claro
de que toda interpretação da Bíblia significa necessariamente abertura
de espírito. Assim, ela fornece uma narrativa necessária para combater o
pessimismo de nosso mundo tão cheio de conflitos. A Bíblia faz parte da
coleção Livros que Mudaram o Mundo, reunindo biografias de títulos que
modificaram sua época e, até hoje, influenciam nossa forma de pensar.
Quando Maomé orava
em uma caverna, conta-se que ouviu uma voz que lhe passou uma série de revelações.
Essas palavras transformaram profundamente a vida desse mercador
analfabeto,e o modo como pensava sobre si mesmo, a sociedade e o mundo.
Após a morte do Profeta, seu primo Ali trabalhou para transformar em
livro as revelações oralmente transmitidas e recitadas. Todas as versões
existentes foram sistematizadas em um texto sagrado, que permaneceu
praticamente inalterado até hoje: o Corão. Historiador da religião,
Bruce Lawrence descreve como a obra fascinou e guiou milhões de adeptos e
mostra como o significado desse livro milenar é basicamente a paz.